O Construtivismo é uma das mais recentes e grandes teorias de aprendizagem. Recente porque o primeiro estudioso que a formulou para o campo da epistemologia e educação foi o biólogo, psicólogo e epistemólogo suíço, Jean Piaget, no século XX. E grande porque da proposta de Piaget surgiram outras teorias construtivistas, derivadas e vetorizadas por especiações, e todas muito importantes; mas, em última análise, todas elas podem ser amplamente classificadas como construtivistas.
Desde sua formulação e exportação a partir da Suíça, o construtivismo tornou-se muito popular e, nos últimos 50 anos, largamente adotado no Brasil. Contudo, durante este período, o construtivismo brasileiro - e, de fato, latino-americano - , sofreu a influência da metafísica e sociologia de Karl Marx e, partindo desta leitura, foi deformado ao ponto de tornar-se antagônico à sua versão original, mantendo, porém, o mesmo nome. Isso levou a uma alteração de 180º da teoria construtivista que, no entanto, consolidou-se sutilmente como "construtivismo" mediante densa propagação dos meios de cultura pedagógica (e.g., universidades e mercado editorial).
Sendo assim, o que hoje se é popularmente conhecido como construtivismo nas faculdades e círculos ligados a educação, não pode ser chamado de construtivismo, no sentido estrito da teoria de Piaget. A proposta deste artigo é, então, expor a ideia original do construtivismo e contrastá-la com as concepções alteradas desta importante teoria, tecendo críticas e expondo o problema desta alteração.
O que é o construtivismo?
Quando Piaget concebeu sua proposta de aprendizagem, abertamente amparou-se na epistemologia de Imanuel Kant, um dos mais importantes filósofos da era moderna. Para Kant, a mente possui uma estrutura tal que enquadra a realidade em suas categorias prévias. Desse modo, o que podemos perceber do mundo não é o mundo em si, mas uma adaptação, uma representação do mundo, já que os filtros e categorias pré-existentes na mente afetam o olhar sobre a realidade, fazendo-a enquadrar-se e amoldar-se à estrutura mental do sujeito. Por isso, na filosofia kantiniana há uma diferença entre a realidade (os númenos) e a forma pela qual a realidade se apresenta ao sujeito (os fenômenos).
É vital notar aqui o quanto a proposta de Kant se diferencia da epistemologia predominante até então, o empirismo, que preconiza a capacidade do sujeito em absorver a realidade exatamente da forma como ela é. A principal obra de Kant, Crítica da Razão Pura, endereça justamente a falsa concepção de que não existem distorções na apreensão da realidade, e de que o que se conhece é igual a coisa em si.
Quando Piaget baseou-se na proposta de Kant para pensar sua teoria, inaugurou uma mudança no relacionamento entre o objeto cognoscível e o sujeito cognoscente, afirmando que a realidade é construída subjetivamente pelo sujeito. Daí o nome construtivismo - a aprendizagem é uma construção do aprendiz, ao invés de ser uma ação do objeto para a pessoa, que apenas recebe as informações, passivamente. O que sabemos do mundo não equivale ao mundo em si, mas é uma construção de nossa mente. A mente distorce a informação sensível para que se adeque às suas categorias prévias. A percepção da realidade é diferente da realidade.
O acréscimo fundamental que Piaget faz ao construtivismo de Kant - e que leva à distinção entre o construtivismo e o cognitivismo - é que, para Kant, o indivíduo que aprende assimila as informações do mundo pelos sentidos, de modo que sua concepção da realidade é criada pela mente, a partir de suas estruturas; e para Piaget, as próprias estruturas prévias da mente sofrem alteração na construção do aprendizado. Portanto, para Piaget, o sujeito que aprende não apenas transforma a realidade dentro de sua mente, mas tem sua própria mente transformada pelos insumos da realidade, e que uma vez transformada, retroalimenta a transformação da realidade, em looping.
Esta é, grosso modo, a base do construtivismo original de Piaget.
De que modo o construtivismo atual diferencia-se do original?
Desde a década de 80 duas distorções do construtivismo têm se destacado, carregando grandes danos à educação e maculando a teoria construtivista conforme foi concebida. Essas distorções que sequestram o nome construtivismo para si mesmas, mas que se afastam dele em direção oposta, podem ser chamadas de (I) construtivismo social ou socioconstrutivismo, e (II) construtivismo radical.
O socioconstrutivismo sustenta que todo conhecimento sobre a realidade é construído socialmente - ou seja, parte das subjetividades das pessoas e grupos que, ao compartilharem suas experiências, intencionalmente ou não, constroem, socialmente, sua representação da realidade. Além disso, a realidade, em sentido estrito, deixa de existir. Apenas existe nossa figura interna da realidade. Se a realidade é tida como uma ordem de coisas existentes que existe independente e fora de nossa mente, este conceito passa a ser rejeitado no construtivismo social. Desse modo, no socioconstrutivismo, a realidade é não apenas subjetiva em sua natureza, mas construída a partir de contextos sociais, desembocando no relativismo pós-moderno.
E o construtivismo radical estabelece que a realidade sequer existe, senão como representação subjetiva da pessoa. Esta orientação nega qualquer tipo de realidade no sentido estrito, como a ordem existente fora de nossa mente e independente dela, e afirma a equalização completa entre realidade e percepção. O construtivismo radical desemboca no solipsismo.
O que é preciso constatar é que tanto o socioconstrutivismo quanto o construtivismo radical se antagonizam completamente com o construtivismo original de Piaget.
A realidade existe externa e independentemente da consciência individual
Em primeiro lugar, no construtivismo, a realidade como ordem de coisas existentes fora da nossa mente e independente dela, não cessa de existir. Muito pelo contrário. Ela tanto existe que os insumos para a construção do aprendizado vêm dela. Os sentidos a absorvem para criar uma representação da realidade. Ainda que tenhamos acesso apenas a essa representação, e não à realidade em si, a realidade em si continua existindo. Mais ainda, a ideia de uma representação pressupõe exatamente um modelo independente do qual parte a representação.
A realidade não é uma construção social
Em segundo, a realidade não é construída exclusivamente pela interação social. Pode haver um elemento de interatividade social na construção de percepções da realidade mas não como condição sine qua non para o processo e muito menos como substituição da ideia de uma realidade externa, absoluta e objetiva. O objetividade não é suplantada pela subjetividade. A realidade existe. A objetividade existe. O construtivismo radical rejeita, portanto, a necessidade de buscarmos uma visão mais real de qualquer assunto. Rejeita-se a ideia de realidade. O que existe é representação interna socialmente construída; o que existe são narrativas sobre a realidade advindas de grupos com afinidades sociais. Nada de objetivo existe.
Levando as incoerências às suas últimas consequências
Se considerarmos as consequências lógicas do socioconstrutivismo e o construtivismo radical, veremos que a conclusão do primeiro leva à ideia absurda de que cada agrupamento social tem a sua verdade. É um slogan comum, sobretudo nas discussões sociopolíticas, mas profundamente falso e pernicioso. Se um determinado grupo social defender a ideia de que o sol não existe, este grupo não pode ser tido como certo em sua reivindicação, nem mesmo dentro do contexto de sua própria construção. O sol constinua existindo mesmo que este grupo não acredite nisso e defenda o contrário. E a conclusão do segundo leva à ideia, igualmente absurda, de que cada um tem a sua própria verdade. Ou seja, o que é verdade para uma pessoa pode não ser para outra. Nesse prisma, se um indivíduo afirma ser um super-herói defendendo que isso é verdade para ele, ninguém poderá pensar o contrário ou mesmo questionar essa afirmação. A verdade é subjetiva - se tal afirmação é verdade para ele, então ele realmente é um super herói.
Em tempo, ninguém nega que a percepção da realidade seja subjetiva. E ninguém nega que cada pessoa possa acreditar em uma versão da realidade e afirmar sua própria versão como verdadeira. Neste sentido podemos dizer que cada pessoa tem sua própria verdade. Contudo, o conceito de verdade que está implícito aqui é o conceito que conecta uma afirmação à sua correspondência para com a realidade. Ou seja, o conceito de verdade que estou veiculando aqui é o de que não basta eu acreditar em alguma afirmação para que ela seja verdadeira. Eu posso acreditar em uma afirmação e essa afirmação ser falsa, independentemente do grau de confiança que eu nutrir sobre ela. Para que uma afirmação seja verdadeira, no sentido que a defendo neste artigo, essa afirmação precisa corresponder à realidade.
As deformações do construtivismo de Piaget não passam no teste da lógica
Tanto o socioconstrutivismo quanto o construtivismo radical trazem um dano incalculável ao aprendizado, neutralizando e distorcendo as ideias de realidade, de verdade e de conhecimento, todas tão caras ao intelecto humano e às suas aspirações mais nobres, desde o início. Além disso, vale mencionar que tanto um quanto o outro conduzem a uma inevitável inconsistência lógica: (I) a afirmação de que não existe uma realidade leva a sua própria anulação, pois se não existe uma realidade, tampouco existe a sentença de que a realidade não existe. Um objetivista poderia argumentar que tal sentença só existe na mente de quem a promulgou, sendo, portanto, inválida para o resto da humanidade. E (II) a afirmação de que a verdade não existe também é autofágica, pois se a verdade não existe, então a verdade de que a verdade não existe também é irreal, levando à conclusão inversa (i.e., de que a verdade existe).
Conclusão
O construtivismo, em sua formulação real, não apenas defende a existência de uma realidade objetiva e absoluta, como a pressupõe. Sua reivindicação reside em afirmar que a cogniscibilidade desta realidade é indireta, ocorrendo por meio de suas projeções na criação interna da mente. Mas por meio de adaptações cognitivas constantes é possível chegar a representações cada vez mais próximas da realidade, ainda que nunca a alcancem integralmente.
Estas são as deformações mais comuns do construtivismo original. Quando pensarmos em construtivismo, para qualquer finalidade que seja, que tenhamos em mente o construtivismo real, de Piaget, e não as deformações pós-modernas que tanto destroem as inteligências e pervertem as instâncias mais básicas para a existência humana e a elevação de seu raciocínio.